Toma que o filho também é teu

Não cabe aqui um preâmbulo enrolado; o que tenho a dizer com o texto de hoje deve ser exprimido com todas as letras, tão cedo e tão alto quanto possível: não gostar de crianças é um lapso de empatia no seu nível mais fundamental, e excluí-las de espaços sociais é discriminação e, muitas vezes, machismo aplicado.

Agora sim, segue o ensaio com todas as firulas habituais:


Um tempo atrás vi um post no Instagram sobre não ser permitido não gostar de crianças. Li, concordei e compartilhei nos stories.


Raramente uma viva alma responde ao que posto nas redes sociais (este blog é só mais um grandíssimo exercício de futilidade), mas desta vez obtive pelo menos umas dez respostas, todas em objeção à minha posição - e todas vindas de pessoas ditas progressistas, decepcionantemente. Como era um tópico a respeito do qual tenho convicções fortes, resolvi contra-argumentar todas as pessoas até onde a conversa pudesse se estender.


Todas elas vieram com os mesmos argumentos. De acordo com elas, crianças incomodam, são barulhentas e ninguém tem a obrigação de gostar de ninguém.


Não espanta que o argumento por trás de uma discriminação seja idêntico ao utilizado por praticantes de outras. Homofóbicos dizem não serem obrigados a gostarem de gays; racistas dizem não serem obrigados a gostarem de negros. A circunstância social da discriminação varia, mas a natureza dela é a mesma: formadores de discurso atribuem características negativas a um segmento demográfico, generalizam a noção até virar crença popular e, quando vira, cria-se um senso comum errado que presumidamente legitima práticas opressivas.


Como é que alguém pode olhar para uma criança e não ver uma vítima de circunstâncias? Criaturas que não pediram para vir ao mundo, que são levadas a lugares desinteressantes e sobrecarregadas com dados aleatórios, e no meio de tudo isso ainda têm que virar cidadãos. É de surpreender que não sejam ilógicos e hiperativos o tempo todo.


Crianças são barulhentas, às vezes. Adultos também. Já viu torcedor de futebol, conversa de bar, carteado e sinuca no churrasco? São ainda piores. Crianças têm curiosidade, hormônio de crescimento correndo solto nas veias e um mundo cheio de possibilidades para explorar. O barulho se justifica. Adultos têm álcool para tentar escapar da realidade que eles mesmos criaram. De quem nós não devemos gostar?


Crianças incomodam, sim, às vezes. Adultos também. A criança vai querer um pouco de amor e atenção de vez em quando, vai fazer perguntas que tomam segundos preciosos do adulto que prefere conversar sobre trivialidades e matar tempo nas redes sociais. O adulto vira presidente da república, inventa juros, explora empregados e tem uma mente destituída da capacidade de processar fascínio. A criança não incomoda - ela causa inveja.


Eu tive o prazer de acompanhar o crescimento dos meus dois irmãos mais novos, e é incrível como um gesto pequeno pode reverberar positivamente para o resto da vida. Lembro de esclarecer dúvidas quanto a informações básicas, como o número que vinha depois do dezoito. Eu disse que era o dezenove, e dali em diante o meu irmão sabia o que era o número 19, e sempre que ele tinha uma dúvida vinha me perguntar. Ele sabia que podia confiar em mim, que eu dava a ele atenção, e eu o ajudava a empilhar os blocos mais fundamentais do conhecimento. A gente construiu uma relação assim. Outra vez, a minha irmã sentou na minha barriga e perguntou “Dudu, você é gordo?”. Eu disse que sim, e ela só disse “hm, tá bem”. A partir dali ela sabia o que era ser gordo - sem preconceito, sem julgamento, sem valor atribuído a isso que não fosse o significado.


Com o tempo eles começaram a demonstrar sentimentos, a reagir mais visivelmente às coisas que ouviam. Quando eram ofendidos, ameaçados ou diminuídos, eu os trazia para o meu colo, abraçava, fazia carinho e dizia que não havia nada de errado com eles, e que tudo estava bem e continuaria bem. O semblante mudava imediatamente, relaxava. Era maravilhoso, e hoje percebo que a maioria das pessoas nunca vai criar uma conexão dessas. Todos perdemos com isso.


Li uns anos atrás um artigo sobre espaços “child free”, que não aceitavam crianças. A legislação se encarregou de pôr fim a este absurdo, mas ainda assim, lembremos: a mãe é quase sempre dada como responsável pelos cuidados do filho, a guarda de crianças de pais separados em sua maioria fica com a mãe e os casos de alienação parental por parte de pai superam significativamente os de mãe. Excluir crianças de espaços sociais apropriados, portanto, frequentemente significa discriminar a mãe. Isso é, na prática, segregação.


Finalmente, um esclarecimento: nada do que eu argumento neste texto visa reforçar a noção de que mulheres têm a obrigação de ter filhos. Ninguém tem esta obrigação, e eu mesmo não quero ter filhos (gosto de viver por mim mesmo, não tenho condições financeiras para sustentá-los e não quero passar adiante genes carregados com propensão a doenças mentais). A situação requer exatamente o contrário: enquanto sociedade, devemos às mulheres leis, direitos e programas educativos que dêem a elas total e incondicional autonomia sobre seus corpos, a começar pela liberdade de abortar uma gravidez de forma segura. A responsabilidade que defendo ao longo do ensaio é devida às crianças que existem e que eventualmente venham ao mundo, e nada tem a ver com a decisão individual de tê-las.


Todos nós já fomos crianças. É uma obviedade, mas parece que ninguém entende. Todos nós já exigimos de adultos paciência, atenção, amor e orientação, mas nem todos tivemos isso. E todos nós sabemos o que acontece com crianças que não recebem isso. Se quisermos um mundo com pessoas melhores, precisamos entender que enquanto crianças são incumbência primeiramente dos genitores ou responsáveis, são também uma responsabilidade coletiva. Um milésimo de segundo de empatia basta para que um adulto entenda que o tratamento dispensado a uma criança em qualquer instância pode ser a diferença entre um trauma crônico e um futuro indivíduo solidário e íntegro. Monkey see, monkey do - dar o exemplo é fundamental. Isso é amor, e devemos isso às crianças tanto quanto devemos a nós mesmos.


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