Entre ser cruel, ser justo e ser ambos

You made a fool of me

But them broken dreams have got to end

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Eis um começo de história que vários amigos já tiveram que tolerar: umas semanas atrás conheci uma guria pelo Tinder.

O começo da interação foi um pouco difícil — ela era do tipo que não conferia o app com frequência (compreensível; também tenho tido pouca paciência para ele) e acabava me deixando no vácuo; até chegou a passar uma semana sem me responder, mas toda vez que tornava a aparecer oferecia desculpas sinceras e eu as aceitava. Quem leu meu texto anterior sabe que relações unilaterais têm sido gatilho de depressão na minha vida, mas resolvi me dedicar neste início de interação porque entendia que ela possuía uma rotina atribulada e tinha a impressão de que éramos parecidos em praticamente todos os pontos que acho importantes.


Meu investimento de atenção e empenho compensou quando tivemos nossas primeiras conversas longas e substanciosas, desta vez sobre a vida, preferências e questões ideológicas. Estava saudavelmente empolgado. Falávamos por Telegram (o qual jamais havia utilizado e baixei por ser o app de preferência dela) e seguíamos um ao outro no Instagram. Logo passamos a fazer o mesmo no Twitter.


Infelizmente com o passar dos dias ela tornou a não responder no chat, desta vez em definitivo. O período de sumiço se estendeu à segunda semana completa, um ínterim no qual eu educadamente tentava iniciar conversas sem obter resposta. Nas demais redes sociais ela permanecia ativa, postando diariamente fotos de receitas, colheita de amoras e gatos, além de pensamentos aleatórios.

Já estou acostumado ao ghosting (e também já o cometi, embora não o faça mais); é ocorrência frequente em interações iniciadas em apps de relacionamento, estou calejado e não acho que ninguém tenha a obrigação de me dar atenção ou responder ao que digo só porque tem atividade em outros lugares. Ainda assim o processo é, sabidamente, uma forma passiva, preguiçosa e covarde de comunicar total falta de interesse, mas por conta da minha esperança em ver nossas compatibilidades funcionando resolvi esperar até o fim de mais uma semana e ver se conseguiria uma palavra que fosse.

Ao deixar minha terceira mensagem sem resposta em mais de duas semanas numa quarta-feira, vi surgir na timeline um tweet dela que dizia algo como “só o que me faltava agora, ser cobrada por um feio”. O post foi deletado no dia seguinte, mas entendi como sendo direcionado a mim. Quando deu domingo, deixei de segui-la nas redes sociais. Algumas horas depois, ao conferir se ela ainda me seguia, percebi que tinha sido totalmente bloqueado.

O ghosting e o bloqueio fazem o calo das experiências passadas doer um pouco, mas ter sido chamado de feio foi algo gratuito e cruel que continua a doer muito. Tenho trinta e cinco anos e sou chamado de gordo desde que me conheço por gente. Quem chama de gordo não o faz elogiosamente, tampouco a critério de observação — o faz porque acha feio, usa o adjetivo como ofensa. Faz pouco tempo que tento me aceitar como sou e ressignificar certas impressões, então foi inevitável interpretar a mensagem dela como sendo dirigida a mim, não só considerando todas as circunstâncias mas principalmente tendo em mente o fato de que ela está consideravelmente dentro do padrão de beleza social que conhecemos. Se ela me chamou de feio é porque sou, entre outras coisas, gordo, e por mais subjetiva que seja uma opinião, a dela vai encontrar muito mais consenso que dissonância.

Não estou e nem quero viver sob a ilusão de que sou “bonito” ou chego perto do padrão — num dia bom eu me acho aceitável para sair na rua para fazer o necessário e me permitir ser visto por outras pessoas sem ser esteticamente ofensivo — mas também não quero me odiar ainda mais do que já fiz por décadas. O que essa mulher fez não se faz, e não há dia ruim ou diagnóstico psiquiátrico que torne esse tipo de comportamento razoável.


Eu ainda não reconstruí a pouca autoestima da qual dispunha e nem sei se vou conseguir. Também não sei se ela vai pensar nisso alguma hora ou tentar se retratar; visitei o perfil dela no Twitter fora da minha conta para ver se algo fora dito e as únicas novidades eram posts sobre voleibol e games. Desde então larguei mão dela e do tema, exceto para escrever este texto.


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O mês e meio passado desde o ocorrido fez com que eu pusesse em prática algo que me consumia há mais de treze anos.


Em março de 2010 tive um breve relacionamento. Eu beirava os 22 anos e foi a terceira pessoa com quem me envolvi na vida (até hoje foram doze). Em poucas palavras, eu era imaturo, machista e paranóico, e acho que me portei de forma insensível, mesquinha e manipuladora com a pessoa em questão.

Nos vários anos que se seguiram calhou de nos toparmos constantemente em certo ambiente. Toda vez que passava por ela eu era tomado por vergonha e culpa, mas tínhamos deixado de nos falar quando do término.


O que me acometia não era o popular “não superar a ex”, mas sim não superar a pessoa que eu tinha sido naquele momento. Tivesse eu tratado qualquer outra pessoa, independentemente da natureza da relação interpessoal, de uma forma que eu julgasse injusta, sentiria a mesma culpa.


Esse sentimento de injustiça constantemente ecoava na cabeça e eu me perguntava se seria pertinente tentar entrar em contato. Eu acreditava que precisava estender uma mão e me retratar de alguma forma, oferecer reparação, qualquer coisa. Ao mesmo tempo, não queria reacender uma mágoa que ela pudesse eventualmente ter reprimido de forma bem-sucedida. Um dilema dramático básico. Cheguei a pesquisar a respeito de situações similares na internet e falar disso na terapia e com amigos.


Existiam argumentos a favor e contra. Complicado quando a vida nos dá questões relativas demais.


Pois eis que dias atrás me aparece no Instagram o perfil dela na bandeja de recomendados, anos depois de ter qualquer tipo de sinal da existência dela online. Não aguentei e, de madrugada, redigi um texto breve que reeditei oito vezes antes de enviar. Eis a versão final:





Mandei posteriormente para uma amiga revisar; ela disse que se recebesse um texto assim de um ex, ficaria feliz. Fiquei mais aliviado.

Não obtive resposta (ainda), mas sinto que tirei da cabeça algo que precisava ser dito. Nem todo mal pode ser corrigido, mas acho que seja válido buscar redenção, ainda que tardia.


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Na primeira versão desse texto eu dizia que não sabia se a história tinha alguma moral. Percebi ao reeditá-lo que a moral é simples: palavras pesam.


Ainda guardo mágoas da primeira pessoa; ainda guardo culpa quanto à segunda. Sou uma pessoa diferente para cada uma delas e um desastre para mim mesmo. Mas sigo trabalhando.


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