Controlar os meios de educação é a verdadeira revolução

Estamos na temporada de ENEM e de vestibulares - e, sob o risco de soar como um idoso falando “no meu tempo…”, dos 16 aos 22 anos a minha vida girava em torno disso. Mesmo tendo nesse período o meu primeiro relacionamento, minhas três (!) primeiras experiências acadêmicas, algumas viagens interestaduais, o surgimento e o fim de amizades marcantes, situações em que me meti a cantar na frente de pessoas no que era descrito como um “show”, traumas familiares e a minha introdução à psicoterapia, nada mais existia além da questão de vida ou morte que era entrar na universidade.

Fiz vários vestibulares, por vários motivos: medicina (para agradar ao pai, médico), arquitetura (para agradar aos pais, que queriam algo rentável), direito (por sugestão dos pais), física (porque achava que queria trabalhar na NASA, provavelmente fazendo robôs de alta rentabilidade para o Luciano Szafir) e ciências da computação (se alguém souber o motivo, por favor, me conte). Acabei cursando um mês de direito (IES, 2005), um semestre de administração (Estácio, 2006) e dois anos de engenharia civil (UFSC, 2008-10). A saga acabou em 2011, quando passei para letras inglês na UFSC; tinha começado um curso de inglês fazia um ano, estava cansado de fazer o que meus pais sugeriam - ou forçavam - e não aquilo que me dava prazer e no que eu era bom. A experiência em letras não foi uma lua de mel do início ao fim, claro, mas era evidente a todos que me conheciam que a minha identificação com o ambiente era significativamente maior que a sentida em experiências anteriores. Passei sete anos no curso e me formei nas duas habilitações.


Por que esse preâmbulo extenso? Porque a primeira coisa que se deve ressaltar quando se fala de vestibular é a dimensão injustificável que isso toma na vida de uma pessoa que está se submetendo ao processo de ingresso em universidades.


Não vou dizer nada que não seja óbvio, mas às vezes o óbvio precisa ser dito, e é ridículo exigir de pessoas saindo da adolescência que saibam que caminho profissional querem trilhar. Não bastassem a validação de apenas parte do conhecimento humano na formação de currículos escolares, a desumanidade da medição de um indivíduo através de formas arbitrárias de avaliação e a limitação do escopo razoável de caminhos a se trilhar através da priorização das funções enlatadas que o sistema capitalista exige, o sujeito ainda tem que fazer essa escolha aos 17 anos - ou pior, às vezes fazer o que os pais escolheram para ele.


A impressão que o zeitgeist passa é a de um momento de transição: jovens estão cada vez mais cientes do absurdo instaurado e são críticos de suas circunstâncias, mas também partem de um sistema em que internalizam profundamente as mesmas noções contra as quais estão lutando. Acabam, por resultado, vivendo o pior dos dois mundos: sabem que enfrentam um monstro, mas também se sentem incompetentes quando não atingem os resultados exigidos por ele.


A construção de um sistema educacional humano e voltado à transformação da realidade passa pela indignação dos estudantes de hoje. A minha geração, que fez ensino médio há 20 anos, era conformada, mimada e alienada; por isso ainda temos pessoas relativamente jovens que contribuem para a manutenção do problema. 


Francamente, eu adoraria ter a resposta pronta, limpa, num envelope endereçado ao MEC, mas ter me formado em licenciatura resultou em mais perguntas que soluções. É difícil colocar prioridades numa balança e encontrar o equilíbrio. Liberdade ou disciplina? Conteúdo programático ou currículo livre e adaptado? Divisão por faixa etária ou por desenvolvimento intelectual? Horários fixos ou flexibilidade? Isso que estou me limitando a questões relativamente básicas - quem sabe que outros dilemas e deficiências os eminentes pedagogos da academia estão enxergando com suas visões além do alcance que eu não consigo enxergar mesmo tendo subido no ombro de um gigante ou outro?

A única coisa que consigo afirmar com certeza é que deveríamos proporcionar a todos a educação que lhes for apropriada, sem limites de vagas, sem exames de ingresso, sem mensurar pessoas de forma arbitrária, desumana e anti-pedagógica. A oportunidade de ingressar em uma universidade pública deveria ser universal e irrestrita a todos os alunos egressos do ensino médio, requerendo apenas a matrícula, e a habitação aos alunos de baixa renda ou de lugares remotos deveria ser garantida. Só então universidades que gostam de se dizer “públicas”, “gratuitas” e “de qualidade” poderão fazê-lo sem hipocrisia.


Muitos argumentarão que uma vaga em universidade pública deveria, sim, priorizar um sistema meritocrático, pois naturalmente os candidatos mais qualificados são mais aptos a virarem bons profissionais depois de formados que os candidatos menos qualificados. Eu argumento que os critérios de seleção para a entrada em universidades públicas são falhos e insuficientes, e quem merece entrar é quem é cidadão brasileiro e tem vontade de estudar. Privar um detentor de diploma de ensino médio da experiência de estudar numa universidade pública é podá-lo da chance de se entender enquanto cidadão, desenvolver novos interesses, ser exposto a pontos de vista e realidades até então desconhecidas, socializar fora do conservadorismo da vida real e compreender a verdadeira grandeza dos vários campos de estudo do conhecimento humano. A quaisquer outras pessoas que julguem ter argumentos válidos para um sistema excludente, sugiro que peguem seus cadernos de vestibular e os moldem da forma que lhes convier para então introduzi-los nos seus cus. Não tenho muita paciência para elitismo.


Às pessoas que já tomaram rumo às suas provas ou estão voltando delas, servem os clichês de sempre: o vestibular não define a inteligência de vocês, existem várias outras oportunidades dentro dos próximos meses, a vida de vocês mal começou, isso não é o fim do mundo e, de qualquer forma, colocar uma maioria de adolescentes nessa situação é um absurdo. Os clichês são repetidos porque são extremamente verdadeiros. Lutem pelo que vocês querem ver nas suas vidas e no mundo, mas não se deixem definir pelas derrotas, e questionem as regras do jogo sempre. Transformar as coisas é possível.


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